No sábado, a mesa está posta. O barulho dos talheres anuncia o combinado de sempre: quem chega, ajuda; quem come, lava a louça. Uma adolescente encosta a mochila no sofá, observa o vai-e-vem da casa e sorri quando a filha caçula traz a tigela de pipoca. Talvez haja boliche mais tarde; amanhã, quem sabe, haverá só um filme e conversa. A rotina não mudou de endereço, apenas aprendeu a acolher mais uma pessoa. Esse tem sido o cotidiano da família de Isabel Santos, com o marido, a filha e a afilhada afetiva, que passou a conviver com eles desde setembro do ano passado.

Essa cena poderia pertencer a qualquer família campineira. Aqui, porém, ela tem um nome que não aparece nos sobrenomes: apadrinhamento afetivo. Não é adoção, nem um ensaio para isso. É convivência com propósito, isto é, abrir espaço na agenda, no afeto e na rede para que uma criança ou um adolescente acolhido reencontre, aos poucos, o direito de pertencer.

Em Campinas, “o apadrinhamento afetivo complementa o acolhimento institucional com convivência segura, acompanhamento técnico e respeito à história de cada criança e adolescente”, diz Vandecleya Moro, secretária de Desenvolvimento e Assistência Social. Andrea Santos Souza, promotora da Infância e da Juventude de Campinas, acrescenta: “O padrinho participa em momentos combinados e acompanha etapas importantes, mas não assume a responsabilidade integral da parentalidade. Isso preserva a criança e dá segurança à convivência”.

A construção desse pertencimento tem, em Campinas, um caminho estruturado desde 2014: formação, habilitação e acompanhamento técnico. “Desde 2014, o apadrinhamento afetivo cobre uma lacuna do acolhimento, que é devolver à criança e ao adolescente a convivência familiar e comunitária. A gente busca e prepara o voluntário para ser essa referência segura, de modo que ele entre habilitado e acompanhado”, destacou Fábio Barbieri, gestor do Acordar, da Guardinha de Campinas.

O voluntário não entra sozinho, ele é preparado pelo Acordar (Serviço Complementar de Apadrinhamento Afetivo), da Guardinha de Campinas, um serviço cofinanciado pela Prefeitura, para se tornar uma referência segura. “Quando falamos de apadrinhamento, falamos de construção de vínculos, isto é, tempo partilhado, convivência familiar e comunitária e alguém com quem contar”, afirmou Fábio Barbieri.

Apadrinhamento Afetivo Acordar

O Apadrinhamento Afetivo Acordar já contemplou 144 crianças e adolescentes, sendo que ainda há crianças e adolescentes aguardando por um padrinho ou madrinha afetiva. Cada indicador, no entanto, é um rosto e, muitas vezes, um recomeço simples: uma volta no Taquaral, uma casquinha de sorvete, uma dica de redação que vira nota 10. “O amor é de graça. O importante é a presença”, afirmou Isabel Santos. “Os indicadores que acompanhamos apontam melhora de frequência escolar, redução de evasão e maior estabilidade emocional, sempre com supervisão técnica”, declarou Vandecleya Moro. “O que a gente observa no cotidiano é muito concreto, como melhora de comportamento, retorno à escola, redução de evasão, mais tranquilidade no serviço e apoio nas questões emocionais. Quando a criança se sente segura, ela volta a projetar o próprio caminho”, destacou Fabio Barbieri.

“O apadrinhamento afetivo não gera para o padrinho as mesmas responsabilidades de adoção, guarda ou tutela. A criança não vai morar com os padrinhos. O que muda para ela é ter alguém especial por perto, com cuidado personalizado”, explicou a promotora Andrea Santos Souza. “Apadrinhamento não é via para adoção, é vínculo de referência. Exceções existem, porém a regra é atenção especial e responsabilidades bem delimitadas”, disse Vandecleya Moro.

Isabel Santos, advogada, casada e mãe de dois filhos adultos, chegou ao apadrinhamento após 12 anos de atuação voluntária no projeto Fazendo Minha História, uma experiência que a aproximou do cotidiano dos abrigos e pavimentou o passo seguinte, isto é, receber quinzenalmente uma adolescente de 16 anos para conviver com sua família.

A família de Isabel adotou, como primeiro movimento com a afilhada, a decisão de trabalhar sonhos. Eles celebraram os 15 anos dela com festa de verdade, com valsa, flores e irmãs presentes, para devolver o sentimento de pertencimento perdido no acolhimento. A partir daí, vieram as cenas miúdas que criam laços: aprender uma receita com a filha confeiteira, pintar a casa nova, dividir a louça, errar e acertar no boliche, assistir a uma série, ajudar a fazer lição e voltar com uma nota 10 na redação. O coordenador do Acordar da Guardinha também destacou: “Não é sobre presentes nem sobre um passeio eventual. A ideia é o afeto, a vinculação e o estar junto. O padrinho disponibiliza tempo, abre a casa e a rede e apresenta família e amigos, e isso dá ao afilhado alguém com quem contar.”

“A instituição cuida de todos ao mesmo tempo; o padrinho diz: ‘eu estou aqui só para você’. Essa atenção personalizada melhora a escola, acalma o dia a dia no acolhimento e dá pertencimento”, destacou a promotora Andrea Souza.

Como em toda família, apareceram regras, nãos e conversas difíceis. Uma adoção frustrada no passado trouxe retraimento e tristeza, e a acolhida precisou redobrar paciência. A família afinou o tom entre idas menos frequentes no fim de semana e encontros no meio da semana, com menos pressa e mais escuta. “Ela disse que o maior medo é perder os padrinhos. Então algo está dando certo”, confessou a madrinha Isabel.

A pergunta inevitável sobre o que a afilhada ensinou e o que recebeu trouxe uma resposta que funciona quase como método. A família aprendeu a resgatar o tempo como valor; a adolescente aprendeu a sonhar sem pedir desculpas por isso. No meio, consolidou-se uma ética: não criar promessas que não se sustentam, não desistir ao primeiro conflito e não substituir laços, mas somá-los.

Preparação: o voluntário não está sozinho

O apadrinhamento é cercado por preparação, pactos e acompanhamento técnico. A família precisa concordar com a decisão; a rede, como igreja, clube, vizinhança e amigos, precisa saber acolher sem perguntas invasivas. Há regras claras de convivência, cuidado com exposição e respeito à história da criança ou do adolescente.

O apadrinhamento não é caminho para adoção. Ao contrário, a distinção explícita protege a criança de novas frustrações e alinha expectativas dos adultos. A convivência pode se encerrar formalmente, mas os aprendizados permanecem. Em muitos casos, o vínculo segue vivo após os 18 anos, quando o jovem sai do serviço, e, nesse momento, uma referência adulta pode significar a diferença entre solidão e rede de apoio. “A convivência pode se encerrar, mas aquilo que foi semeado permanece. Esse é o sucesso do trabalho”, acrescentou Fábio Barbieri.

Outro combinado essencial é integrar, e não girar a rotina em torno da novidade. A casa não vira cenário excepcional, a novidade é caber mais um na rotina possível. A consistência é a verdadeira pedagogia do afeto.

Pontos de proteção, segundo o Ministério Público
 

  • Capacitação e habilitação rigorosa com verificação de antecedentes e perfil;
  • Prevenção de usos indevidos, desde tarefas domésticas até outras violações, com identificação precoce e barreiras a candidatos inadequados;
  • Prevalência da vontade da criança ou do adolescente na aproximação e na continuidade do vínculo;
  • Exceções não viram regra, porque pode haver adoções após vínculos muito sólidos, mas esse não é o objetivo do apadrinhamento e a adoção segue fila própria.

“Não se faz apadrinhamento no improviso, por melhor que seja a intenção. Estamos lidando com vidas humanas”, destacou a promotora Andrea Souza.

 

Perguntas sobre apadrinhamento afetivo

Preciso dar presentes ou bancar passeios caros?
Não. Como diz a promotora, o diferencial é o cuidado personalizado, isto é, estar, ouvir e acompanhar. Presentes podem acontecer, mas não são a regra.

Apadrinhamento é teste para adotar depois?
Não. Não é via para adoção. Em raras exceções, vínculos muito sólidos levaram a adoções, como exceções. Se a intenção é adotar, procure a fila da adoção.

Quem responde pelo cuidado diário?
A entidade de acolhimento. O padrinho oferece algo a mais, individualizado, “estou aqui só para você”, sem substituir a proteção institucional.

Como o Ministério Público atua?
O Ministério Público instiga a implantação do serviço dentro da rede de garantias, acompanha a qualidade e incentiva campanhas de divulgação para atrair voluntários.

Para educar uma criança

“Como diz um ditado africano, é preciso uma aldeia para educar uma criança. O apadrinhamento nos tira do individualismo e nos convoca a olhar, com proteção e afeto, para quem mais precisa”, afirmou Andrea Souza.

A promotora descreve o apadrinhamento como uma possibilidade concreta de garantir, a quem está acolhido, o direito à convivência familiar e comunitária. Não se trata de substituir a responsabilidade da entidade de acolhimento, mas de oferecer um cuidado personalizado, isto é, “eu estou aqui só para você”, que a instituição, por natureza, não consegue replicar para todos ao mesmo tempo.

Andrea realça um dado estrutural: a conta da adoção não fecha, porque o perfil mais desejado pelos pretendentes, como crianças muito pequenas, sem irmãos e sem necessidades especiais, não corresponde ao perfil predominante de quem aguarda, como crianças mais velhas, grupos de irmãos e necessidades específicas. Nesse cenário, o apadrinhamento se apresenta como porta de vínculo, especialmente para adolescentes, os mais fora da fila da adoção, com impactos observáveis, como melhora na escola, maior tranquilidade no serviço e referência de apoio para decisões do cotidiano.

Há, porém, regras. Padrinhos e madrinhas não assumem obrigações de pais, eles oferecem presença qualificada em momentos combinados, apoio nos estudos, acesso a atividades culturais, participação em ritos como aniversários e celebrações e acompanhamento em reuniões escolares, sempre sob orientação técnica. A habilitação é criteriosa e visa proteger, isto é, afastar usos indevidos, desde exploração de tarefas domésticas até riscos mais graves.

Outro princípio norteador define a escolha pela criança ou pelo adolescente. A aproximação acontece com escuta ativa; se houver desconforto, interrompe-se. Embora não seja a finalidade, Andrea lembra que vínculos excepcionais já culminaram em adoções de adolescentes; essas exceções confirmam a potência do vínculo, não um atalho indevido.

Do ponto de vista das políticas públicas, cabe ao Ministério Público instigar, e ao município, implantar e publicizar o serviço. Campanhas consistentes, depoimentos reais e redes atentas ajudam a transformar disponibilidade afetiva em compromisso concreto. O provérbio africano que Andrea convoca, “é preciso uma aldeia para educar uma criança”, funciona aqui como método, isto é, sair do individualismo e fazer da cidade uma aldeia protetiva. “Precisamos de voluntários com tempo, responsabilidade e disposição para aprender. Quem se interessar deve iniciar pela capacitação e pelo processo de habilitação junto à Guardinha de Campinas”, afirmou Vandecleya Moro.

Serviço

Quem pode apadrinhar? Pessoas com 21 anos ou mais, residentes em Campinas, com disponibilidade de tempo e afeto.
Quem pode ser apadrinhado? Crianças e adolescentes de 7 a 17 anos, acolhidos no município, com remotas possibilidades de retorno à família de origem ou de adoção.
O que faz um padrinho/madrinha? Disponibiliza tempo e convivência familiar/comunitária em momentos combinados; oferece apoio em diversas áreas, acesso a atividades culturais e presença qualificada, sem substituição de responsabilidades parentais ou da entidade de acolhimento, sempre com orientação técnica e respeito à história da criança ou do adolescente.
Como participar? Realizar cadastro e participar de palestra de esclarecimentos na Guardinha de Campinas; em seguida, cumprir as etapas da habilitação: capacitação, visita domiciliar, estudo psicossocial. Pessoas habilitadas, acompanhadas pela equipe técnica, recebem autorização da Vara da Infância e da Juventude para atuar nesta modalidade.
Site: https://guardinha.org.br/acordar-apadrinhamento/
Rede social: https://www.instagram.com/apadrinhamentoafetivo.acordar/