O juiz Marcelo da Cunha Bergo, titular da Vara da Infância e Juventude de Campinas e coordenador do Núcleo local de Justiça Restaurativa apresentou, na manhã desta terça-feira, 21 de outubro, os fundamentos, princípios e usos práticos da abordagem restaurativa no sistema de justiça e nos espaços comunitários. A palestra ocorreu durante o 2º Encontro Ampliado de Justiça Restaurativa, realizada no Auditório da Faculdade Sofia (Rua Barreto Leme, 1552, Centro).

 

O encontro foi organizado pela Comissão Gestora de Justiça Restaurativa e integra o trabalho, planejado para este segundo semestre de 2025, de sensibilização ao tema. O evento marcou o início da mobilização para a construção coletiva do Plano Municipal de Ações de Justiça Restaurativa de Campinas, ação planejada para 2026.

 

Partindo do eixo conceitual, o juiz contrapôs a ideia de cultura do medo, associada a individualismo, competição e punição, à cultura de paz, que entende o conflito como parte da vida e propõe respostas de diálogo, consenso e comunicação não violenta. Na cultura do medo, a violência seria inevitável; na cultura de paz, ela é evitável, e danos podem ser tratados sem reproduzir violência.

 

Campinas instituiu por lei, em 2019, uma política permanente de Justiça Restaurativa e, desde então, vem ampliando formações, práticas e parcerias para prevenir violências, restaurar vínculos e qualificar a convivência em escolas, serviços públicos e territórios. A Política Pública e o Programa de Justiça Restaurativa foram criados pela Lei Municipal nº 15.846, de 2019, alinhada à Resolução nº 225, de 2016, do Conselho Nacional de Justiça. A governança é intersetorial. A Comissão Gestora de Justiça Restaurativa, atualmente vinculada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social, articula secretarias, universidades, o Judiciário e organizações da sociedade civil. Entre os apoios estratégicos, destacam-se a Vara da Infância e Juventude, com atuação do juiz Marcelo da Cunha Bergo, e o Grupo Gestor de Justiça Restaurativa da Cidade Judiciária. “Este encontro inaugura a construção do Plano Municipal de Ações de Justiça Restaurativa. Queremos participação social para que cada território tenha condições de sustentar práticas regulares”, destacou Vandecleya Moro, secretária de Desenvolvimento e Assistência Social. 

 

Para mudar a lente sobre infrações e conflitos, o magistrado organizou perguntas-chave: quem sofreu o dano? Quais são as necessidades? De quem é a responsabilidade de supri-las? Quais as causas e qual o processo adequado para envolver as pessoas interessadas na reparação? Ao diferenciar justiça criminal e justiça restaurativa, Marcelo Bergo destacou que a primeira se centra na violação da lei e na culpa do autor; a segunda desloca o foco para pessoas e relações afetadas, gerando obrigações de reparar. O processo restaurativo é colaborativo, busca consensos e privilegia a participação direta, diferentemente do rito adversarial.

 

A diretriz central da Prefeitura é colocar diálogo, corresponsabilidade e reparação no centro da prevenção e da resolução de conflitos, como complemento às respostas legais e com atenção para evitar a reprodução de violências. A política dialoga com marcos como a Lei nº 14.811, de 2024, que tipifica bullying e cyberbullying, e se integra às políticas de educação, assistência social, saúde, segurança pública e direitos humanos. “A Justiça Restaurativa é método. Quando escuta, corresponsabilidade e reparação entram na rotina das políticas públicas, a cidade reduz danos e amplia confiança”, reforçou Vandecleya Moro.

 

O juiz Marcelo Bergo também mapeou necessidades frequentemente negligenciadas. Vítimas carecem de informação, escuta e participação; ofensores precisam de estímulo para transformação e apoio à reintegração; comunidades requerem fortalecimento do senso de responsabilidade mútua. Responsabilizar, no paradigma restaurativo, é reconhecer o dano e adotar medidas para corrigi-lo, não apenas aplicar punição.

 

Entre as ferramentas práticas, Bergo enfatizou os processos circulares de construção de paz, conhecidos como Círculos, inspirados em saberes ancestrais e aplicados em bairros, escolas, locais de trabalho, serviços da assistência social e no Judiciário. Os Círculos valorizam relatos de experiência, estabelecem diretrizes e utilizam um objeto de fala; as decisões são por consenso. O formato em roda simboliza liderança partilhada e inclusão, favorece foco e participação, e apoia valores fundantes como respeito, humildade, compaixão, empatia e confiança. 

 

Como campos de aplicação, a justiça restaurativa aparece no apoio a vítimas, em sentenças de adultos e adolescentes, na reintegração de egressos, no acompanhamento de condenados em liberdade, em mediação de conflitos de vizinhança e na gestão de disciplina escolar. O juiz reforçou princípios estruturantes: foco nas necessidades de vítimas, comunidade e ofensores; tratamento das obrigações de reparar danos; processos inclusivos; participação de todos os diretamente interessados. 

 

O que avançou de 2019 a 2025

 

Formação continuada: a Escola de Governo e Desenvolvimento do Servidor e parceiros ofertam turmas anuais do curso Introdução à Justiça Restaurativa. Desde 2019, foram em média duas turmas por ano, com cerca de quinze concluintes por turma, o que soma aproximadamente cento e vinte profissionais capacitados em áreas como educação, assistência social, saúde, segurança pública, justiça e comunidade.

 

Escopo ampliado: a justiça restaurativa deixou de focar exclusivamente crianças e adolescentes e passou a incluir servidores públicos, famílias, equipes de trabalho e comunidades, atuando tanto na resolução de conflitos quanto na prevenção e na qualificação da convivência.

 

Territórios e redes: práticas circulares foram incorporadas a escolas, unidades do CRAS e do CREAS, centros de convivência, unidades de saúde e equipes de trabalho. A Comissão Gestora promove reuniões intersetoriais e oferece apoio técnico à rede.

 

Marcos públicos: realização do Primeiro Fórum Municipal de Justiça Restaurativa em 2024, encontros ampliados e fortalecimento da comunicação com a comunidade.

 

Resultados qualitativos: relatos de reconciliação de equipes, redução de tensões em salas de aula e serviços, melhoria do clima institucional e fortalecimento de vínculos. Estimativas preliminares registram cerca de vinte escolas com práticas recorrentes, consolidação em curso e detalhamento a ser formalizado no Plano Municipal.

 

O que acontece em um Círculo de Construção de Paz?

 

A metodologia mais difundida de Justiça Restaurativa são os Círculos de Construção de Paz, conduzidos por facilitadores formados e pautados pela neutralidade ativa e pela escuta qualificada. O processo tem preparação, execução e acompanhamento. Nos pré-círculos, mapeiam-se danos, necessidades e expectativas de quem participa; no encontro principal, utilizam-se objeto de fala e regras acordadas, com etapas de abertura, compartilhamento, convergência e compromisso; nos pós-círculos, monitoram-se acordos e aprendizagens do grupo.

 

Casos ilustrativos:

 

  • Bullying e cyberbullying: estudantes e famílias firmaram pedidos de desculpas, reparações simbólicas e pactos de convivência.

  • Luto e saúde emocional: círculos semanais ajudaram turmas a lidar com perdas no período pós-pandemia, recompondo pertencimento e apoio entre pares.

  • Reconciliação de equipes: servidoras retomaram o diálogo e restabeleceram a cooperação até o fim do ano letivo.

  • Forças de segurança: encontros de escuta com a Guarda Municipal ressignificaram trajetórias profissionais e fortaleceram laços de equipe.

 

Círculos não são rituais vazios. São tecnologias sociais de escuta, responsabilidade e reparação.

 

Avaliação

 

A Comissão Gestora destaca que a justiça restaurativa não se mede apenas por número de mediações. Os indicadores são relacionais e processuais, como confiança, vínculo, corresponsabilidade, reparação e participação. A sistematização respeita a proteção de dados. Para o período de 2026 a 2028, o Plano Municipal em elaboração propõe metas em cinco eixos:

  • Formação: três ou mais turmas por ano na Escola de Governo e Desenvolvimento do Servidor, taxa de conclusão de setenta por cento ou mais, sessenta por cento ou mais de gestores com formação básica.

  • Implementação territorial: aumento anual de cinquenta por cento ou mais de escolas e unidades com práticas regulares, realização mensal de círculos por região, oitenta por cento ou mais de acordos com acompanhamento pós-círculo.

  • Clima e convivência: monitoramento por surveys (método de pesquisa quantitativa que coleta dados e opiniões de grupos de pessoas) de percepção de segurança relacional e confiança entre pares, queda anual de vinte por cento ou mais na reincidência de conflitos no mesmo grupo.

  • Comunicação e engajamento: encontros e fóruns anuais, número de parceiros ativos e alcance de campanhas.

  • Governança e transparência: publicação anual do Boletim de Aprendizagem Restaurativa e manutenção de painel público de indicadores.

 

Por dentro da governança

 

A Comissão Gestora define diretrizes, acompanha formações e apoia a implementação. A coordenação está na Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social. A rede executora inclui educadores, assistentes sociais, psicólogos, profissionais de saúde e de segurança pública, gestores e lideranças comunitárias. A integração com o Judiciário, por meio da Vara da Infância e Juventude e do Grupo Gestor da Cidade Judiciária, garante alinhamento com a política nacional e apoio técnico às práticas. 

 

Perguntas frequentes

 

Quais ações foram realizadas? Cursos de introdução à justiça restaurativa, práticas circulares em escolas e territórios, reuniões intersetoriais, Primeiro Fórum Municipal em 2024 e encontros ampliados.

Quantas escolas adotaram práticas? Vinte escolas com práticas recorrentes, consolidação em curso e detalhamento previsto no Plano Municipal.

A justiça restaurativa substitui a lei? Não substitui. Complementa a responsabilização legal com foco em reparação de danos e restauração de vínculos, quando há consentimento das partes e adequação do caso.

Quanto custa? O investimento principal é em formação, horas de facilitação e coordenação intersetorial; benefícios esperados incluem menos litígios, melhor clima de trabalho e menor reincidência.

 

Glossário rápido

 

Círculo de construção de paz: metodologia dialógica com regras acordadas, objeto de fala e etapas sequenciais.

Pré-círculo: preparação para mapear danos, necessidades e expectativas.

Pós-círculo: acompanhamento dos acordos e aprendizagem do grupo.

Facilitador ou facilitadora: profissional formado para condução com neutralidade ativa e escuta qualificada.

Acordo restaurativo: compromisso para reparar danos e restaurar relações.